Foi mais ou menos assim. Você assiste à algum podcast aleatório com alguma thumbnail chamativa, falando de algo que, eventualmente, chama a atenção. Um tema como morte ou paranormalidade, ou ambos, que por si só seriam o suficiente para qualquer pessoa – pelo menos na minha modesta opinião – se interessar. Afinal, quem não se interessaria pela morte? A morte não é nada pessoal; ela é o caso de todo o mundo. Não é exclusividade de alguém, então desconsidero qualquer ser humano que desconsidere a relevância do tema. Existir é, numa forma estrutural do persistir-se no meio em que nos havemos – no caso mais genitivo que se possa haver-se -, o grande propósito evidenciadamente imediato de se viver. Então, dessa evidência tão fundamental de nos perceber “existindo porque existimos”, não há que se imaginar outra questão mais preocupante que o tema de podermos um dia não existir. E no que consistiria esse inevitável e, talvez, aparente não existir?
Josiane Oliveira é tanatopraxista. Seu ofício é a morte. E por mais que aquela thumbnail chamativa ganhe a nossa atenção por fazer menção a “espíritos”, “fantasmas” e outras possíveis manifestações daqueles que um dia já foram “vivos”, o que mais é intrigante, digno e manifestadamente sobrenatural sobre nossa entrevistada, não emerge das possíveis experiências paranormais daqueles que trabalham nos bastidores funerários preparando os corpos para o derradeiro momento.
Pois, por mais fantástica que possa ser a experiência de presenciar manifestações dos mortos, como ouvir os sons das suas vozes, perceber os seus vultos, ou sentir as suas presenças, a lição extraída do ofício e passada por Josiane aos seus inúmeros alunos nos laboratórios de tanatopraxia são a maior expressão do sublime. Como essência, essa prática ocupa lugar entre àqueles fenômenos que todos deveríam experimentar como mágico, juntamente à tudo o que se nos aparenta como sobrenatural.
Mais que uma certeza de que persistiremos após a nossa passagem por este planeta, seja em outro plano ou dimensão, o que Josi nos apresenta é uma perspectiva para uma vida sublime.
“Eu cuido daquele que já foi o amor da vida de alguém.”

“Eu cuido daquele que foi já foi o amor da vida de alguém”. A frase constantemente repetida por Josi em suas inúmeras entrevistas, são a máxima da nobreza de espírito. De um espírito que, como nós, ainda vive, mas que, diferentemente da nossa maioria absoluta, o faz na expressão da virtude. O seu lema reflete, em sintética expressão, o que muitos debruçaram-se em obras filosóficas extensas para expressar. É a virtude aristotélica, o cuidado heideggeriano, o amor… de quantos e tantos filósofos, expresso em simples fórmula nietzschiana, bruta e precisa, tanto quanto do amor lacaniana, enquanto ato plenamente vazio.
Um cuidado que constitui e eleva o ser ocupando-se e pre-ocupando-se daquele que, ainda, é, mas de forma transcendida. É um ocupar-se daquilo que tem valor por guardar em si um si mesmo numa forma como o ainda. Uma exceção à temporalidade, que não desvanece diante de tudo àquilo para o que tão desesperadamente tentamos traçar limites: quando surge a vida e quando se pode atestar a morte. Um ato lançado ao vento, cuja existência se deve unicamente a si mesmo. Uma carta remetida para si mesmo. Um doar-se que não procura recompensa e que, por isso mesmo, é maior expressão de amor. É o “dar uma flor”, no modo mais lacaniano que se possa imaginar.
Josiane aparece em nosso estúdio virtual para uma entrevista, através de seu celular. E não é o caso de que ela fale alto, como ela mesma afirma, mas sim porque o que ela diz preenche com tanta profundidade o ambiente, que àqueles que ali, como nós, se encontram, não há reação mais adequada do que calar-se em admiração. São proposições honestas. São doses de verdades profundas que atraem a atenção de todos e não o tom da sua voz.
“o respeito pelos entes queridos dos outros, os cuidados despendidos num laboratório de tanatopraxia, são a maior expressão de algo que não vem somente da ética profissional, mas sim da nobreza dessa tanatopraxista.”

A tanatopraxia era, antes de Josi, um ofício sem reconhecimento e podemos imaginar os motivos. Era uma prática oculta pela sua natureza. Eram profissionais com os quais só teríamos contato nos momentos mais dolorosos de nossas vidas. Contudo, o respeito pelos entes queridos dos outros, os cuidados despendidos num laboratório de tanatopraxia, são a maior expressão de algo que não vem somente da ética profissional, mas sim da nobreza dessa tanatopraxista. O porque de um cuidar tão bem de algo que já não tem mais vida, após Josiane passa a ser o cuidar de alguém que já foi o amor da vida de outro.
E assim, num mundo onde é generalizado o desprezo pela própria vida alheia; num mundo onde, com naturalidade, passamos por cima pessoas que não tem o mínimo para sua sobrevivência, largadas em nossas esquinas; num mundo onde mesmo os que são pagos para cuidar das nossas vidas, muitas vezes nos tratam como objetos; o cuidado com aqueles que “não podem se defender” porque já não estão vivos, é uma lição de moralidade que não deveria ser a exceção, jamais, mas sim a regra, sob pena de gozarmos de uma existência vazia. Sendo assim, a questão que devemos nos colocar não seria se o desprezo que aparentemente ostentamos pela morte, no final das contas, não seria o reflexo do quanto tornamos indesejável as nossas próprias vidas?
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