ESTADIO DO ESPELHO
I. O bebê ao nascer não tem consciência de um si-mesmo, na nossa maneira de compreensão, nem mesmo da integralidade ou limites do que seja o “seu” corpo físico. O mundo todo ao seu redor é entendido, nesse primeiro momento, como extensão fragmentada de si. Ele se compreende como esse “lugar” fragmentado. Quando as sensações do mundo externo, que ainda não é entendido como externo, lhe chegam não há uma diferenciação do que seja externo ou interno. Parece difícil de imaginar e tento explicar algo que é absolutamente técnico em termos compreensíveis.
II. Imagine o seguinte: você perde um membro de seu corpo, mas o mundo evolui ao ponto em que podemos construir próteses que conseguem, além de restaurar a forma de um membro, lhe transmitir as mesmas sensações que você possuía com um membro natural do seu corpo. Contudo, essa prótese não é de carne e osso. Você a vê em seu formato mecânico, com peças de diversos tamanhos que se movem da forma que seu braço natural se moveria, ao seu comando, mas ele não é como o membro com o qual você nasceu.
III. Você encaixa a prótese e ela imediatamente, numa simbiose futurista, reconhece o seu corpo, ajusta automaticamente todas as conexões com o seu sistema nervoso central e passa a ocupar em seu cérebro todas as conexões do seu membro natural.
IV. O bebê ao nascer não tem consciência de um si-mesmo, na nossa maneira de compreensão, nem mesmo da integralidade ou limites do que seja o “seu” corpo físico. O mundo todo ao seu redor é entendido, nesse primeiro momento, como extensão fragmentada de si. Ele se compreende como esse “lugar” fragmentado. Quando as sensações do mundo externo, que ainda não é entendido como externo, lhe chegam não há uma diferenciação do que seja externo ou interno. Parece difícil de imaginar e tento explicar algo que é absolutamente técnico em termos compreensíveis.
V. Imagine o seguinte: você perde um membro de seu corpo, mas o mundo evolui ao ponto em que podemos construir próteses que conseguem, além de restaurar a forma de um membro, lhe transmitir as mesmas sensações que você possuía com um membro natural do seu corpo. Contudo, essa prótese não é de carne e osso. Você a vê em seu formato mecânico, com peças de diversos tamanhos que se movem da forma que seu braço natural se moveria, ao seu comando, mas ele não é como o membro com o qual você nasceu.
VI. Você encaixa a prótese e ela imediatamente, numa simbiose futurista, reconhece o seu corpo, ajusta automaticamente todas as conexões com o seu sistema nervoso central e passa a ocupar em seu cérebro todas as conexões do seu membro natural.
VII. O vento sopra e você o sente. Você sente o toque de outra pessoa, o calor do fogo, o frio do gelo… espeta o seu novo membro e sente dor! Contudo, esse membro não é o seu. Você não consegue diferenciá-lo de um objeto qualquer… ainda. Mas só ainda. Esse objeto que te transmite as sensações e faz o que você deseja te confunde em determinados momentos. Ele é um objeto que você ainda vê como apartado de si. Contudo, o tempo passa, você começa a ver sua imagem no espelho e a tirar fotos e se observar nelas com esse novo membro. E com tempo essa extensão do que era você, começa a ser mais e mais entendido como você.
VIII. E é isso o que acontece a um bebê. Incialmente – perceba – que o bebê nunca se viu. E mesmo que se visse, não poderia se apontar numa imagem refletida com outras pessoas, outros bebês, ou até mesmo com objetos. Ele não tem a noção do que seja seu corpo. As sensações lhe chegam, mas ele não tem como identificar, de saída, de onde vêm, nem onde se iniciam, nem ao certo de que parte vieram.
IX. O sugar do peito da mãe lhe traz sensação de saciedade. Contudo é o movimento dos lábios para sucção, pré configurados em nosso cérebro, que lhe traz a sensação de saciedade, ou é o contato com peito da mãe, ou o colostro que é sugado e que tem um sabor determinado? Como definir isso num caso em que nem se sabe ao certo se a mãe não é parte de si?
X. Todas as sensações que lhe chegam, esse amálgama indefinido de impulsos nervosos externos e internos, a fome, a saciedade, etc… De onde vem a fome? De onde vem a saciedade? Isso tudo ainda não é completamente compreendido. O bebê não sabe de si. Ele é uma abertura a ser preenchida, confusa com sensações internas e externas, programada para ler o mundo ao redor e a si mesmo a fim de manter a vida do corpo biológico. E assim é até os seis meses de idade.
XI. A sensação de fome gerada no cérebro é uma evolução biológica engendrada para a manutenção da vida. É uma necessidade se alimentar. Mas como um organismo chega a essa “noção”? Imagine você, caso nos fosse possível, criar um organismo vivo. Você tem a sua frente um punhado de células cuja sobrevivência se funda em se nutrir. O persistir-se de um momento inicial diferenciado é o que constitui a vida: obter esses nutrientes para cada célula do corpo, através da alimentação. Obter esses nutrientes, no entanto, é a matéria cuja forma inicial é esse passo-um, esse primeiro instante, esse momento-um (proton – προτον) que é a forma da vida – mas isso será objeto de outro post. Assim, a alimentação tem que ser percebida pelo sistema nervoso central como algo fundamental. Você, como criador de um organismo vivo – dessa máquina de sobrevivência (como se refere Richard Dawkins) -, tem a missão de construir um sistema que faça o corpo se alimentar. Não existe a noção de “fundamental”. Não basta escrever uma linha de código, ou dizer ao organismo “isso é fundamental”, pois ele sobrevive de sensações, não de conceitos. Qual a saída para que esse aglomerado de células aprenda e entenda que se alimentar é fundamental?
XII. Você sabe que nesse organismo há um sistema nervoso. Se ele não existisse você deveria criá-lo, pois o funcionamento regular dessa estrutura é o que sustentará toda a integração e integridade do aglomerado de células. Desta forma, você tem à sua frente um aglomerado de células de inumeráveis funções diversas, dentre as quais se encontram as que compõe esse sistema nervoso. Esse, por sua vez, no seu modo mais básico tem que ser preenchido com sensações. Todas as sensações são impulsos elétricos de modo binário. Que é o modo mais conveniente à criação. Um sistema que identifica o que é bom e o que é ruim é o mais conveniente. Bom, no nosso caso, seria a saciedade; ruim, já seria o seu oposto, a fome. Então, a cada momento em que as células desse organismo estiverem precisando de nutrientes, o sistema nervoso será incumbido de transmitir uma sensação ruim, qual seja, a de fome.
XIII. Em seguida, temos que fazer com que o organismo perceba o que causa a saciedade. A saciedade em si é uma forma de prazer. Para que esse corpo perceba o que é bom, paralelamente é criada uma sensação de prazer em realizar atos que tragam a saciedade. Então colocamos células capazes de transmitir a sensação de gosto na “boca” desse corpo – no orifício em que se pretende introduzir os alimentos. O que é bom, o que irá trazer a sensação de saciedade, é associada a essa sensação de prazer inquinada por papilas gustativas, que você também já criou. Depois nós sofisticaremos mais esse organismo e colocaremos células no nariz e nos olhos, capazes de realizar a mesma operação de identificar o que é “bom” através do cheiro e também da visão, mas inicialmente, ficaremos com essa versão rudimentar como exemplo.
XIV. Assim, para sentir gosto o corpo tem que levar coisas à sua boca. O primeiro contato com o seio materno, talvez seja a primeira sensação de prazer encontrada e identificada pelo nosso corpo. E nosso organismo inventado, nesse momento, não verá isso de forma diferente. Como a sensação de bem estar é transmitida pela boca, é ela que “instintivamente” buscará saciar a sensação de fome. Ao encontrar a fonte de alimento, as papilas reconhecem o que é colocado nessa boca como algo gostoso, a sensação de prazer é transmitida e logo em seguida o corpo aprende que sugar é prazeroso e que a primeira sensação de prazer entra pela boca. Pronto, nosso organismo inventado foi ensinado a sugar, e foi resolvido o problema da nutrição através das sensações binárias de dor e prazer. Todo o restante complexo que vem a se desenrolar posteriormente é como um sistema em linguagem binária. Uma identificação que em nós tende a complexidades absurdas, chegando até mesmo à confundir dor e prazer. Mas tudo se estrutura a partir dessa forma.
XV. Sendo assim, os bebês, nos primeiros anos de vida se defrontam com essas experiências desse mundo de sensações, aprendendo desde logo a identificar o que é fonte de prazer, de onde vem a sensação de prazer e com quais atos ela é alcançada. Esses atos, incialmente, são completamente virtuais. Com o tempo é que se é possibilitado distinguir que a sensação de sugar o seio materno é um ato próprio e até mesmo que o que é sugado é realmente sugado, ou seja, vem de fora do corpo, pois incialmente não é possível se fazer essa distinção através da noção de prazer ou dor, tão somente. Ou seja, que o “sugar o seio da mãe” é diferente de qualquer outra sensação originada internamente, como a fome, por exemplo.
XVI. Inicialmente, uma sensação é só uma sensação. É o impulso inicial, contudo. Mais fundamental que o nutrir-se para esse organismo complexo, essa máquina de sobrevivência.
XVII. Isso tudo indica que o bebê lida incialmente com esse não saber-se- ao-certo. Não há consciência. Não há “mim”, “eu”, “ser”, ontologicamente. O bebê não pensa ainda em si, como si-mesmo. Há, no entanto, essa fratura, essa abertura que é virada para o mundo. E essa abertura começa a se preencher. As sensações transmitem ideias mais complexas. O bebê começa a perceber que depende de algo para assegurar a sua sensação de prazer que é a fonte da manutenção da vida. Ou seja, no final, esse prazer que é identificado com a aquisição de coisas, fundamenta estruturalmente o que podemos chamar de “instinto de sobrevivência”. Essa é a estrutura do que chamamos de sobreviver. Assim, o que o bebê percebe, na ponta desse iceberg, é que depende de algo para a sua sobrevivência (mas é claro que isso seria complexo demais para que um bebê assim entendesse, como qualquer outra forma de vida não humana. Um animal age, simplesmente, não tem em mente o que nós chamamos de instinto de sobrevivência, perpetuação de espécie, etc..).
XVIII. Esse processo todo de amadurecimento das sensações e das consequentes distinções realizadas do seu próprio corpo, da mãe, dos outros entes e dos objetos, começa a tomar forma a partir dos seis meses de idade, até os dezoito meses de idade.
XIX. Nessa fase, o bebê encontra, por exemplo, outros bebês. A mãe sempre diz algo como “Olha, meu filho! Outro bebê!”. Na frente de um espelho, costumamos a mostrar e apontar para o espelho indicando quem é que se encontra ali. No início é até mesmo natural que um bebê ao ver outro bebê confunda-se com o outro. A imagem no espelho, passa a refletir a si mesmo, ou melhor, a imagem de si mesmo. E é exatamente isso que vem a delimitar, dentro da teoria Lacaniana do sujeito, o que construímos como “nossa” imagem. “O quê” somos. Somos uma imagem de nós mesmos. A imagem no espelho, a imagem do outro é o que vem a formar a nossa própria imagem e identidade. Toda imagem que temos de nós mesmos, em realidade, nunca irá passar disso.
XX. A abertura ôntica do sujeito incompleto do organismo de sensações primevo, na ânsia de manter o momento-um, do perpetuar-se como esse momento distinto, propicia o engendramento dessa percepção de um corpo a partir do corpo de outro e a criação da sua imagem própria a partir da imagem do outro, uma apropriação de si mesmo como imagem. O sujeito lacaniano é, como em Heidegger, essa abertura; essa inexistência existente; essa persistência como cálculo existenciário; essa nadidade ôntica originária. Eis o Estádio do Espelho.